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domingo, 24 de abril de 2011

FÉ E RAZÃO: Inimigas?


A passagem da Idade Média (pré-modernidade) para a Idade Moderna é marcada pelo rompimento de uma série de elementos que até então eram importantes para sociedade agropastoril, geralmente construída tendo a Igreja como centro demarcador dos horizontes. Drasticamente, a visão mítica da realidade humana, fruto da interpretação dos fatos povoados pelo imaginário lendário, da presença determinante do mistério, é substituída pela compreensão lógica dos acontecimentos. Com isso, rompe-se com todo o postulado da Igreja Medieval, da explicação teológica de alguns centros do pensamento medieval, que davam supremacia ao mistério (misterioso) em detrimento do que é histórico, do plausível e do verificável, que propunha uma fé que subordinava a razão.

Segundo Torres Queiruga¹, o paradigma científico pré-moderno estava fundado em alguns pressupostos que apontavam para a passividade humana frente ao desconhecido, frente ao mistério. Logo, pode-se afirmar que o ser humano concebido pela pré-modernidade estava configurado numa visão pessimista e negativa do que é o humano. A ausência da plena autonomia fazia com que a humanidade estivesse muito dependente do que a Igreja estabelecia por verdade. Toda cosmovisão de mundo estava tutelada à idéia de um Deus intervencionista, que controlava tudo e todos, cabendo ao ser humano calar-se frente ao desconhecido. Sua realidade era tocada quase que exclusivamente por ações divinas ou demoníacas. A compreensão de um mundo tutelado a idéia de um Deus intervencionista para os religiosos, e de um Deus ausente, ou pouco atuante para os deistas fazia com que o ser humano fosse um mero coadjuvante da história. Esta forma de ver a história e o próprio ser humano demonstrou-se anacrônica e pouca válida na medida em que favoreceu o passivismo e, ao mesmo tempo, uma revolta contra um Deus dominador e cruel que, de certa forma manipulava os acontecimentos humanos, e que levou a modernidade e alguns de seus autores a ver oposição entre fé e razão. Queiruga está certo de que o que “constitui o núcleo mais determinante e talvez o dinamismo mais irreversível do processo moderno é a progressiva autonomia alcançada por distintos estratos ou âmbitos da realidade”.

As explicações do pré-modernismo focadas numa compreensão mitológica e ahistórica, que atribuía os acontecimentos da realidade física, os disparates sociais e econômicos à vontade de Deus e não à responsabilidade humana não responde aos imperativos e necessidades de novo ser humano. Segundo este autor: “a realidade não só se mostra dotada de uma legalidade intrínseca, que garante sua autonomia, como aparece como radicalmente histórica e evolutiva”. Isto aponta para ruptura com a “cosmologia herdada e a conseqüente perda de legitimidade da autoridade tradicional”. Esta compreensão evolutiva da realidade está na base da crise do paradigma pré-moderno, sendo algo que marca o fundo radical da consciência contemporânea.

Esse período de transição que também é conhecido como a “virada antropológica” é caracterizado pelo abandono das explicações fecundadas pela fé no mistério que abdica da explicação do racional, pelo fim da tutela dos homens ao determinismo divino, inicia um novo período, agora marcado pelo confronto entre a fé e a razão. Nessa nova sociedade, não mais submersa no mundo da magia, a razão passa a ser entendida como a protagonista da história humana. O homem, vendo-se como um ser autônomo, dono de seu próprio caminho, aquele que constrói sua história, rompe com o primado da fé e elege a razão, que se opõe totalmente aos horizontes das explicações teológicas da Igreja, como aporte principal da nova era de desenvolvimento. Uma era onde a ciência tem a última palavra. A verdade passa ser não aquilo que a tradição ou a fé estabelecia, mas o que se pode comprovar por experimentação e princípios metodológicos. Agrava-se o embate entre fé e razão.

Não obstante, cabem algumas perguntas que se entende como imprescindíveis: Fé e razão são inimigas ferrenhas? Estão em campos opostos estes dois elementos constituintes e inatos do ser humano?

Para Joseph Ratzinger, a fé não dispensa a ato de entender que, por conseguinte, é um processo fruto da elaboração racional humana.

Sendo assim, podemos concluir que o entendimento, além de não estar em contradição com a fé, constitui até elemento essencial dela. (...) Fé e entendimento são tão inseparáveis quanto fé e firmeza, simplesmente porque são inseparáveis também o entender e o firmar-se em Deus.²

Segundo sua compreensão, afirmar: creio, necessariamente significa dizer: entendo. Logo, crer sem entender pode levar o ser humano a cair nas armadilhas do mero desejo infantil, a estar preso ao mundo da magia, do mito. Um mundo que transgride a realidade histórica, que fere a lógica, ao que é racional. Seria essa a proposta da fé bíblica?

A idéia de uma fé que se opõe à razão ou que a tenha como inimiga, elemento presente como marca indissolúvel de parte da Igreja da Idade Média, não tem fundamentação na compreensão paulina, e de alguns pensadores como Agostinho, Lutero, John Wesley e outros.

Para Wesley³, piedade e razão, há tanto tempo separadas, precisam estar unidas para que o pensar teológico, o falar sobre Deus seja correto. Para que a Igreja tenha relevância para a modernidade ela não pode prescindir da razão. Devido essa compreensão, ainda que a teologia wesleyana destaque a importância da experiência, ela está consciente de que uma teologia construída ou baseada única e exclusivamente na experiência tende a dar margem ao fanatismo e ao subjetivismo. Sendo assim, Wesley ressalta o importante papel que a razão desempenha. Para ele, renunciar a razão equivale à renúncia da verdadeira religião. A razão não contradiz a revelação, assim como a fé cristã não exige a concordância com o que fere a inteligência, o raciocínio lógico e o bom senso. Apesar de valorizar a razão, Wesley está consciente das limitações da razão humana que por si só não consegue conhecer plenamente Deus, conceito também visto em muitos teólogos contemporâneos, como Félix Pastor, que afirma que

a razão no dinamismo natural do lumem rationis seria capaz de elaborar também uma teologia natural, reconhecendo o fundamento último da criatura. Mas os mysteriun fidei superariam a potência do lumem rationis e só poderiam ser contemplados com ajuda do lumem fidei, quer os ministérios da vida do Deus (...), quer a realidade misteriosa da deificatio humana.4

Não seria a razão inimiga da fé, e sim o racionalismo, essa tentativa de menosprezar o que não se pode verificar através do que é físico. O que não pode ser medido, calculado, repetido, segundo o racionalismo, não deve ser visto como verdade. Partindo desse pressuposto teórico, a fé seria uma das banalidades de uma época que precisa ser superada para que humanidade alcance o pleno desenvolvimento científico. Logo, segundo o racionalismo, a revelação divina não passa de um êxtase da fantasia do homem que abandona a realidade histórica. O racionalismo é reducionista, na medida em que somente aceita como verdade o que pode ser feito pelo homem. A isto pode se chamar de razão tecnicista, pois só objetiva o que é mensurável, o que é tangível, tocável, e útil ao conforto da sociedade.

Discordando dessa postura arrogante do racionalismo instrumental cartesiano, símbolo do modernismo, Félix Pastor acentua que a razão humana tem limites que a impossibilita de compreender certos elementos da fé e da existência humana sem a iluminação da revelação.

(...) para poder afirmar a revelação divina, a razão humana deve preliminarmente ser capaz de conhecer a verdade e distingui-la do erro, de conhecer o bem e distingui-lo do mal; igualmente deve ser capaz de formular a verdade em um enunciado ou sentença e de ser capaz também de escolher o bem livremente.5

Como elemento final, deve-se afirmar que a fé ilumina a razão naquilo que ela não pode alcançar sem seu auxílio, assim como a razão dá suporte ao ato de crer para que ele não seja mero desvario de uma mente doentia. Logo, fé e razão devem ser vistas com dádivas divinas dadas somente ao ser humano, o único que pode dizer: penso logo existo.

¹A. Torres Queiruga, Fim do Cristianismo pré-moderno, p.13-59.

²RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Símbolo Apostólico com um novo ensaio introdutório. Rio de Janeiro: Edições Loyola, (...) p.58

³OLIVEIRA, Marco Antonio. Método e Teologia Wesleyana: Aspectos Especiais (artigo científico não publicado). passim.

4 PASTOR, Alejandro Félix. Teologia e Modernidade: Alguns elementos de epistemologia teológica In Pós-modernidade: Abordagem Sociológica. p78.

5 Ibidem. p. 97.











Por: Rev. Pr. Marco Antonio de Oliveira

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